
Na literatura imortal de Guimarães Rosa, a “terceira margem” do rio representa o espaço do imponderável, o lugar que desafia a geografia física e a lógica cartesiana. Contudo, ao transportarmos essa metáfora para a realidade da Segurança Pública e da Defesa no século XXI, a terceira margem deixa de ser uma abstração poética para se tornar o teatro de operações mais letal da atualidade: o domínio cognitivo.
Em minhas obras, tenho reiterado que a última linha de defesa de uma instituição não é o colete balístico, nem a viatura blindada, mas a verdade bem contada. Estamos imersos em uma Guerra Informacional onde a evolução tecnológica criou essa nova margem: uma dimensão psicológica que se sobrepõe ao território físico. Enquanto nossas academias ainda focam na guerra cinética, o controle da “esquina” e o uso progressivo da força, o adversário migrou para a disputa pelo controle da mente.
A Engenharia da Realidade Artificial
O que definimos como guerra cognitiva não é mera propaganda; é uma abordagem de armas combinadas. Adversários modernos, sejam o crime organizado ou grupos de pressão desestabilizadores, buscam a “superioridade mental”. O objetivo tático não é mais apenas a ocupação de solo, mas a saturação do ambiente informacional para criar o que chamo de Realidade Artificial.
Nesta terceira margem, a munição é a informação moldada para explorar vieses cognitivos. A tática central remete ao Controle Reflexivo: fornecer ao alvo informações específicas para induzi-lo a tomar decisões que favorecem o agressor, sob a ilusão de livre arbítrio. Isso é operacionalizado através de padrões de manipulação midiática que detalho em Guerra Informacional: a Ocultação do contexto, a Fragmentação dos fatos e a Inversão de valores, onde o agente da lei é transformado em vilão e o agressor em vítima social.
O “Hackeamento” do Cidadão e a Erosão do Pertencimento
Diferente da comunicação de massa tradicional, onde o indivíduo era receptor passivo, a guerra na terceira margem é participativa. O cidadão é “hackeado” em seus anseios e medos. Ao corroer a confiança nas instituições, o agressor ataca o pilar fundamental da democracia: a Legitimidade.
Quando a narrativa dominante estabelece que a polícia é uma força invasora ou que o Estado é inimigo, ocorre uma ruptura no Pertencimento Público. Como exploro no Manual de Storytelling, o pertencimento é a consciência de que as instituições são patrimônio coletivo. Se perdemos essa conexão, o cidadão deixa de ver a segurança como um direito seu e passa a vê-la como ameaça . O vácuo deixado por essa ruptura é imediatamente preenchido por narrativas hostis.
A Resposta: Transparência Ativa e Storytelling Estratégico
Como, então, navegar e vencer nesta terceira margem? A resposta não está no silêncio burocrático, nem nas “Notas de Esclarecimento” reativas que, na prática, são confissões de derrota narrativa.
A defesa da soberania cognitiva exige uma nova doutrina baseada em três pilares integrados:
- Transparência Ativa como Dever Constitucional: Precisamos abandonar a postura defensiva. À luz dos Fundamentos da Comunicação Pública, educar, informar e orientar não são opções, são deveres (Art. 37 da CF). Devemos ocupar o espaço informacional com a verdade factual antes que a mentira se enraíze.
- Storytelling como Escudo e Lança: A burocracia não emociona, e quem não emociona não convence. Precisamos dominar a arte de contar nossa própria história para gerar empatia, memória e significado. É necessário humanizar a instituição e mostrar o servidor público não como um robô, mas como um ser humano dedicado a um propósito maior.
- A Técnica do Triálogo: Devemos romper a polarização “Polícia vs. Comunidade”. A comunicação estratégica deve reposicionar o debate para “Instituição e Sociedade contra o Caos”. O cidadão deve ser convidado a ser o herói dessa jornada, com a instituição servindo como mentora e protetora.
Conclusão: A Soberania da Mente
A terceira margem do rio é, em essência, o espaço da nossa autonomia mental e da estabilidade democrática. Se as instituições de segurança e defesa não assumirem a comunicação como uma Função de Comando estratégica, corremos o risco de perder a guerra sem que um único tiro seja ouvido.
A vitória na era da guerra cognitiva depende da nossa capacidade de construir resiliência psicossocial através da verdade. Pois, no final, a narrativa é a ponte por onde trafega a confiança; sem ela, a instituição fica ilhada e vulnerável.
Sobre o Autor: Cleiber Levy G. Brasilino é Doutor em Gestão Estratégica, Ciencias Policiais e Segurança Pública Preventiva, especialista em Comunicação, Psicologia, Inteligência e Direito. Autor das obras “Guerra Informacional na Segurança Pública”, “Fundamentos da Comunicação Pública para Instituições de Segurança” e “Manual de Storytelling para o Setor Público”.




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